Na tarde de terça-feira (14-09), Silvania Macedo prepara mais uma aula para seus alunos. Ela é professora de História, formada em Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Católica de Salvador e, desde a perda da visão na adolescência, tem utilizado o setor braille da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Silvania tem auxílio de pessoas que fazem um trabalho voluntário de leitura para deficientes visuais, (os ledores), como Elza Araújo - Voluntária há quatro anos.
Depois de uma infecção no sangue, Silvania foi perdendo a visão gradativamente. Ela explica que aprendeu o braille quando ainda enxergava, pois a leitura já não era possível. Parou de estudar aos 15 e retornou sete anos depois, para concluir o ensino médio e ingressar na faculdade.
Na Escola Leila Rubens Fonseca, onde dá aulas à oitava série e ao ensino médio, Silvania pratica um ponto chave da sua monografia, o qual reforça que a pessoa cega não deve esconder que tem uma limitação. “Então ao chegar na sala você vai se comportar, não de forma que seus alunos tenham pena de você, mas de forma que eles saibam que você tem uma limitação e precisam compreender e conviver com essa diferença”, ressalta.
Sua rotina escolar se desenvolve com aula expositiva, filmes, música, painel com gravuras e frases dos alunos. Faz chamada, pois copiou o nome deles em braile e eles passam uma lista de presença todo dia. “Claro que tem lá as fraudes na freqüência, isso é inevitável”, brinca a professora.
Nos dias de avaliação tem uma coordenadora que fica na sala, mas Silvania já faz a atividade com consulta: “Eles podem consultar livro, caderno e até o colega, mas não copiem, porque a cópia vai ser anulada”. Silvania com desprendimento reproduz a frase dita aos estudantes e pontua, que para a surpresa dela, os alunos tiveram um avanço muito bom. “Você precisa ter um jogo de cintura, não adianta querer impor determinadas coisas, porque não vai pegar, ainda mais com adolescente”, conclui.
Elza Araújo, Secretária executiva e professora de português aposentada, faz parte do Grupo de Voluntários de Ledores e Copistas para Cegos. Ela enfatiza: “Eles precisam da minha voz como se fosse os olhos, é um prazer tão grande que não tem contra-cheque que pague”. Além da diversidade do trabalho, das diferentes leituras e a interação entre usuários e voluntários, comenta Elza.
O setor braile da biblioteca existe desde 1970 e atende atualmente entre 10 a 15 pessoas por dia, com quatro funcionários no atendimento geral, explica Patrícia Silva, formada em Letras e especializada em Educação Especial. Ela é a única funcionária que faz um atendimento mais pedagógico, na adaptação de livros e textos em formato braile e digital acessível (falados), da própria biblioteca ou levados pelos usuários do setor, pois ainda não existe um quadro de funcionários da área de educação para dar esse suporte.
Além de tradução de textos para o braile, o público de jovens, adultos, estudantes e profissionais, que freqüentam o local, conta com aproximadamente 30 voluntários ledores, que se alternam em turnos e dias, de acordo com a disponibilidade, ajudando em pesquisas, digitação e formatação de textos, comenta Patrícia Silva e completa: “Pode vir alguém aqui tanto para ler um romance, como para ler a conta de luz dele, porque não tem ninguém em casa”.
Patrícia diz que o setor passou por uma reforma recente, pois o acervo estava bem ultrapassado; mais de seis mil livros, que não acompanhavam a grafia braille atual, unificada entre os países. Então o trabalho de reposição é mais demorado, por ser artesanal e não existir gráficas apropriadas disponíveis em Salvador, explica Patrícia: “Existe o Instituto de Cegos, que atende os alunos gratuitamente, e cobra do público externo, para fazer transcrições braille com fins comerciais, e o Cape - Centro de Apoio Pedagógico para os alunos matriculados na instituição”. No entanto, ela admite que não faltam colaboradores, como Ricardo Guimarães, mestre em artes visuais pela Ufba.
Depois de 30 anos de existência do setor, foi produzido o primeiro livro em braille da Biblioteca Pública, com autoria de Ricardo Guimarães, que não tem cegueira, mas sempre teve curiosidade e vontade de participar mais ativamente da vida dos deficientes visuais, e se perguntava: “Será que as pessoas que não enxergam vão gostar do que eu escrevo?”. Antes do livro ele já tinha feito uma exposição, em novembro de 2009, contemplando a acessibilidade com áudio-descrição de imagens e performances.
Ricardo relata o processo de produção do livro e destaca a presença de Patrícia como fundamental, para ele se familiarizar com as questões relacionadas à deficiência visual e entender os recursos necessários para transformar seu livro de poesias em linguagem braille. O livro teve 20 volumes, dois ficaram na biblioteca e os outros foram distribuídos gratuitamente. Ele conta que esse processo melhorou sua escrita e visão para todas as coisas.
“Independente das barreiras, vale a pena toda adversidade, porque tudo se volta para que a gente fique em casa, o deficiente, o idoso, o doente, porque é feio, dá trabalho”, diz Silvania e enfatiza o valor da sociabilização, a qual atribui o prazer da convivência, como o que ocorre entre cegos e ledores.
Elza foi afastada da função de professora devido a um câncer de tireóide, porém isso não resultou em desânimo pela vida, mas sim em solidariedade, com Silvania e todos que a procuram para as mais diversas leituras e situações. “Eu acho que vale muito a pena você desfocar a incapacidade e potencializar a capacidade que ainda se tem, de qualquer modo a gente ainda pode ajudar o outro com a capacidade que sobrou”, conclui Elza.
Silvania fala a respeito da solidariedade de seus alunos e ela não proíbe que eles sejam prestativos. A professora explica que às vezes uma pessoa quer ajudar, mas aquele que vai receber ajuda se coloca de tal forma, como se não precisasse e o outro até se constrange, e acrescenta: “A solidariedade é algo que parece estar acabando, então quando você ver isso em alguém deixe fluir, deixe sair, deixe contaminar”.