quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A biblioteca como um espaço de sociabilização

          Na tarde de terça-feira (14-09), Silvania Macedo prepara mais uma aula para seus alunos. Ela é professora de História, formada em Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Católica de Salvador e, desde a perda da visão na adolescência, tem utilizado o setor braille da Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Silvania tem auxílio de pessoas que fazem um trabalho voluntário de leitura para deficientes visuais, (os ledores), como Elza Araújo - Voluntária há quatro anos.
           Depois de uma infecção no sangue, Silvania foi perdendo a visão gradativamente. Ela explica que aprendeu o braille quando ainda enxergava, pois a leitura já não era possível. Parou de estudar aos 15 e retornou sete anos depois, para concluir o ensino médio e ingressar na faculdade.
           Na Escola Leila Rubens Fonseca, onde dá aulas à oitava série e ao ensino médio, Silvania pratica um ponto chave da sua monografia, o qual reforça que a pessoa cega não deve esconder que tem uma limitação. “Então ao chegar na sala você vai se comportar, não de forma que seus alunos tenham pena de você, mas de forma que eles saibam que você tem uma limitação e precisam compreender e conviver com essa diferença”, ressalta.
           Sua rotina escolar se desenvolve com aula expositiva, filmes, música, painel com gravuras e frases dos alunos. Faz chamada, pois copiou o nome deles em braile e eles passam uma lista de presença todo dia. “Claro que tem lá as fraudes na freqüência, isso é inevitável”, brinca a professora.
            Nos dias de avaliação tem uma coordenadora que fica na sala, mas Silvania já faz a atividade com consulta: “Eles podem consultar livro, caderno e até o colega, mas não copiem, porque a cópia vai ser anulada”. Silvania com desprendimento reproduz a frase dita aos estudantes e pontua, que para a surpresa dela, os alunos tiveram um avanço muito bom. “Você precisa ter um jogo de cintura, não adianta querer impor determinadas coisas, porque não vai pegar, ainda mais com adolescente”, conclui.
           Elza Araújo, Secretária executiva e professora de português aposentada, faz parte do Grupo de Voluntários de Ledores e Copistas para Cegos. Ela enfatiza: “Eles precisam da minha voz como se fosse os olhos, é um prazer tão grande que não tem contra-cheque que pague”. Além da diversidade do trabalho, das diferentes leituras e a interação entre usuários e voluntários, comenta Elza.
           O setor braile da biblioteca existe desde 1970 e atende atualmente entre 10 a 15 pessoas por dia, com quatro funcionários no atendimento geral, explica Patrícia Silva, formada em Letras e especializada em Educação Especial. Ela é a única funcionária que faz um atendimento mais pedagógico, na adaptação de livros e textos em formato braile e digital acessível (falados), da própria biblioteca ou levados pelos usuários do setor, pois ainda não existe um quadro de funcionários da área de educação para dar esse suporte.
            Além de tradução de textos para o braile, o público de jovens, adultos, estudantes e profissionais, que freqüentam o local, conta com aproximadamente 30 voluntários ledores, que se alternam em turnos e dias, de acordo com a disponibilidade, ajudando em pesquisas, digitação e formatação de textos, comenta Patrícia Silva e completa: “Pode vir alguém aqui tanto para ler um romance, como para ler a conta de luz dele, porque não tem ninguém em casa”.
           Patrícia diz que o setor passou por uma reforma recente, pois o acervo estava bem ultrapassado; mais de seis mil livros, que não acompanhavam a grafia braille atual, unificada entre os países. Então o trabalho de reposição é mais demorado, por ser artesanal e não existir gráficas apropriadas disponíveis em Salvador, explica Patrícia: “Existe o Instituto de Cegos, que atende os alunos gratuitamente, e cobra do público externo, para fazer transcrições braille com fins comerciais, e o Cape - Centro de Apoio Pedagógico para os alunos matriculados na instituição”. No entanto, ela admite que não faltam colaboradores, como Ricardo Guimarães, mestre em artes visuais pela Ufba.
           Depois de 30 anos de existência do setor, foi produzido o primeiro livro em braille da Biblioteca Pública, com autoria de Ricardo Guimarães, que não tem cegueira, mas sempre teve curiosidade e vontade de participar mais ativamente da vida dos deficientes visuais, e se perguntava: “Será que as pessoas que não enxergam vão gostar do que eu escrevo?”. Antes do livro ele já tinha feito uma exposição, em novembro de 2009, contemplando a acessibilidade com áudio-descrição de imagens e performances.
           Ricardo relata o processo de produção do livro e destaca a presença de Patrícia como fundamental, para ele se familiarizar com as questões relacionadas à deficiência visual e entender os recursos necessários para transformar seu livro de poesias em linguagem braille. O livro teve 20 volumes, dois ficaram na biblioteca e os outros foram distribuídos gratuitamente. Ele conta que esse processo melhorou sua escrita e visão para todas as coisas.
           “Independente das barreiras, vale a pena toda adversidade, porque tudo se volta para que a gente fique em casa, o deficiente, o idoso, o doente, porque é feio, dá trabalho”, diz Silvania e enfatiza o valor da sociabilização, a qual atribui o prazer da convivência, como o que ocorre entre cegos e ledores.
           Elza foi afastada da função de professora devido a um câncer de tireóide, porém isso não resultou em desânimo pela vida, mas sim em solidariedade, com Silvania e todos que a procuram para as mais diversas leituras e situações. “Eu acho que vale muito a pena você desfocar a incapacidade e potencializar a capacidade que ainda se tem, de qualquer modo a gente ainda pode ajudar o outro com a capacidade que sobrou”, conclui Elza.
           Silvania fala a respeito da solidariedade de seus alunos e ela não proíbe que eles sejam prestativos. A professora explica que às vezes uma pessoa quer ajudar, mas aquele que vai receber ajuda se coloca de tal forma, como se não precisasse e o outro até se constrange, e acrescenta: “A solidariedade é algo que parece estar acabando, então quando você ver isso em alguém deixe fluir, deixe sair, deixe contaminar”.

Conflito de Momento

Em mais um daqueles dias banais, ao entrar no ônibus e sentar-me numa cadeira próxima ao cobrador, pude ouvir a voz rouca de um homem, vinda da parte de trás, dizendo palavras desencontradas, até que finalmente foi possível ouvir o que ele dizia:

- Minha mulher todo domingo me chama pra ir na igreja mas...

Logo percebi no esforço de seu discurso, que o cidadão estava um pouco alcoolizado - bêbado mesmo, conversando sozinho e compartilhando a sua vida para todos os ilustres desconhecidos. E ele continuava:

- Como posso eu deixar de tomar minha cervejinha com os amigos para me enfurnar numa igreja, ah não, final de semana é diversão... Parou novamente no que parecia ser um cochilo, e de súbito, o homem desperta e retoma a conversa.

- Mas bem que a minha mulher também tem razão. Deus é bom! Sabe, outro dia mesmo, eu estava com uma dor de cabeça danada, (relata o homem com uma expressão profunda e dolorida), rezei por tudo que é mais sagrado e a dor passou. Agradeci tanto a Deus!

Agora veja o que tudo isso me lembrou: o homem barroco, lá do século XVII e XVIII, sei lá, aquele ser dividido entre o bem e o mal e cheio de conflitos. E novamente, a voz daquele cidadão corta meus pensamentos e me chama atenção:

- Eu sei que não sou mais garoto e qualquer dia a morte vai chegar pra mim, afinal todo mundo morre... Não é mesmo? (ele se esforça para completar a frase). Por isso, eu penso nos meus filhos e na minha mulher, também. Eu não quero deixar eles aí à toa na vida... Eu me mato de trabalhar, mas o dinheiro não dá para tudo, por isso eu tenho que aproveitar, enquanto é tempo.

- Minha mulher também é feliz do jeito dela com a sua religião. Quem sabe, um dia, eu me junto a ela, sei não!

Mais uma vez, me vem à mente aquele contexto barroco. Triste homem barroco. Triste de nós! Afinal, independente da época meu caro leitor, estamos em constante conflito, dúvidas que permeiam nossa mente, corpo e razão.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Buena Vista Social Club

           Reconhecido e premiado mundialmente, Buena Vista Social Club é um documentário do cineasta Wim Wenders, que revela a musicalidade tradicional esquecida nas ruas de Havana, e a valorização de uma cultura riquíssima e envolvente pela naturalidade de seu povo.
           Após a idéia do guitarrista americano Ry Cooder com o músico cubano Juan de Marcos González, os quais reuniram músicos tradicionais cubanos e produziram um disco de sucesso surpreendente (Buena Vista Social Club), Wenders passa a documentar as apresentações do grupo, primeiramente em Amsterdam e depois em Nova York.           
           A narrativa de Wenders, a princípio parece monótona. Mas, apresenta sua graciosidade em detalhes: no cotidiano dos moradores de Havana, numa delicada exposição de músicos como o pianista Rubén González, a cantora Omara Portuondo, o trompetista Manuel Mirabal e nas performances da orquestra, embalada pela simpatia notável do cantor Ibrahim Ferrer.      
          Ibrahim mostra a simplicidade da casa onde vive e as suas curiosidades religiosas, traduzindo a mesma fé pelas raízes da música cubana. Ele e os músicos que agitavam um Clube, até a década de 40 quando foi fechado, inspirando 50 anos depois o encontro dessa “velha guarda”, não desapareceram pelo caminho comercial da música.           
          Em primeiro de julho de 1998, Nova York recebe e aplaude a Buena Vista Social Club, na casa de show Carnegie Hall. Esse encontro de culturas é o destaque final do documentário. Admirando bonecos de personalidades famosas, através da vitrine de uma loja, os músicos da socialista Cuba, parecem esquecer que naquele momento, eles são as estrelas.